
Que pretensão, ein, companheiros! Querer deslindar o que seja a seiva das histórias! Não se trata disso. Quero apenas especular se existe algo como uma seiva das histórias. Ou que toda história tenha uma seiva, o que é muito diferente. Seiva, aqui, é uma metáfora daquilo que manteria viva a relação de interesse entre, ops, narratário e narrador. Tô falando difícil?
Narratário sou eu, que leio sua história. Narrador é você, que me conta. Ok?
Mas vamos inverter esses papéis, por dez minutos. Eu conto, você lê.
Narratário sou eu, que leio sua história. Narrador é você, que me conta. Ok?
Mas vamos inverter esses papéis, por dez minutos. Eu conto, você lê.
A primeira história
Era uma vez...
Todos os dias, mais de vinte vezes por mês, volto de uma faculdade para casa, depois das aulas. Faço um percurso quase sempre repetido, com pequenas variações, dependendo do interesse em visitar alguém, comprar uma droga contra as dores do mundo na farmácia ou passear numa bucólica avenida central (esta última opção é mentira, não há avenidas centrais bucólicas!).
Quer continuar ouvindo a história? Ou terá maior interesse de ouvir esta outra?
Todos os dias, mais de vinte vezes por mês, volto de uma faculdade para casa, depois das aulas. Faço um percurso quase sempre repetido, com pequenas variações, dependendo do interesse em visitar alguém, comprar uma droga contra as dores do mundo na farmácia ou passear numa bucólica avenida central (esta última opção é mentira, não há avenidas centrais bucólicas!).
Quer continuar ouvindo a história? Ou terá maior interesse de ouvir esta outra?
A segunda história
Oito e trinta da noite, pouco mais. Eu voltava da faculdade para casa. Quando atravessei a Av. Sete em direção ao carro, ouvi uma voz mansa e quase suave, sobre o meu ombro direito:
- E aí, coroa, não tem medo de morrer, não?
Ouvi, mas não percebi, logo, de que se tratava. Veio uma segunda sentença:
- Cadê o dinheiro?
Era um assalto, mesmo. Quando virei o rosto na direção da voz, o que aconteceu numa fração de segundo, enquadrou-se no meu campo visual uma grande faca de cozinha em que fixei meus olhos até o final do episódio. Sou capaz de descrever esta faca nos mínimos e quase microscópicos detalhes de sua forma, sua textura, seus arranhões provocados por uma descuidada e apressada ação de afiar contra cimento áspero. Não sei se vi a cara do rapaz.
O assalto não se consumou. Não que eu tenha convencido ou tenha habilmente dominado corpo e mente do assaltante. Tomei um tamanho susto que reagi. Coisa não recomendável e que eu jamais farei de novo. Com a minha mão esquerda agarrei o pulso direito dele e ficamos num impasse momentâneo, mas inevitavelmente presos um ao outro, já que ele agarrou a manga da minha camisa, no ombro direito. Gritei com ele, umas poucas vezes:
- Tá maluco, cara? Qual é a sua?
O medo me deu uma enorme força na mão esquerda. Instintivamente, devo ter sentido que dominava a mão da faca. Continuei gritando aquele único texto até que ele soltou a outra mão do meu ombro. Livre, empurrei a faca para longe e corri dele, o mais rápido que pude, até me sentir seguro para olhar para trás e avaliar a situação. Ele tinha sumido. Devemos ter corrido em direções opostas, eu para um lado e ele para o outro, ele pensando: Esse coroa é maluco!
Durante algumas noites demorei a pegar no sono, refletindo sobre o risco e a temeridade que cometi. Hoje, um ano depois, deixo de dormir por outras temeridades que ando cometendo (como este blog).
- E aí, coroa, não tem medo de morrer, não?
Ouvi, mas não percebi, logo, de que se tratava. Veio uma segunda sentença:
- Cadê o dinheiro?
Era um assalto, mesmo. Quando virei o rosto na direção da voz, o que aconteceu numa fração de segundo, enquadrou-se no meu campo visual uma grande faca de cozinha em que fixei meus olhos até o final do episódio. Sou capaz de descrever esta faca nos mínimos e quase microscópicos detalhes de sua forma, sua textura, seus arranhões provocados por uma descuidada e apressada ação de afiar contra cimento áspero. Não sei se vi a cara do rapaz.
O assalto não se consumou. Não que eu tenha convencido ou tenha habilmente dominado corpo e mente do assaltante. Tomei um tamanho susto que reagi. Coisa não recomendável e que eu jamais farei de novo. Com a minha mão esquerda agarrei o pulso direito dele e ficamos num impasse momentâneo, mas inevitavelmente presos um ao outro, já que ele agarrou a manga da minha camisa, no ombro direito. Gritei com ele, umas poucas vezes:
- Tá maluco, cara? Qual é a sua?
O medo me deu uma enorme força na mão esquerda. Instintivamente, devo ter sentido que dominava a mão da faca. Continuei gritando aquele único texto até que ele soltou a outra mão do meu ombro. Livre, empurrei a faca para longe e corri dele, o mais rápido que pude, até me sentir seguro para olhar para trás e avaliar a situação. Ele tinha sumido. Devemos ter corrido em direções opostas, eu para um lado e ele para o outro, ele pensando: Esse coroa é maluco!
Durante algumas noites demorei a pegar no sono, refletindo sobre o risco e a temeridade que cometi. Hoje, um ano depois, deixo de dormir por outras temeridades que ando cometendo (como este blog).
Normalidade e crise
Esta segunda história, mais interessante que a primeira, toca a questão da seiva. Por que?
Porque ela nos conduz a uma crise. Uma quebra de normalidade em que não posso prever o desfecho. Enchi o cara de porrada, chamei a polícia e dei queixa? Entreguei tudo o que tinha e até hoje pago as contas do cartão de crédito? Fui esfaqueado e cheguei à emergência do hospital geral em estado de choque com anemia aguda e estou saindo agora, pela primeira vez? Morri e fui para o céu, entediante. Optei pelo inferno, de onde escrevo estas linhas?...
Parece que o bom narrador tem o dom de captar a instituição da (de uma) crise dentro da ( de uma) normalidade, na construção da narrativa de qualquer episódio. Normalidade e crise tanto podem ser óbvias e gritantes, como sutis e delicadas. Decisão de poeta (aqui no sentido de criador).
Experimente: na próxima vez em que for contar uma história, procure considerar o episódio a ser narrado como uma crise que se recorta sobre o pano de fundo de uma normalidade. Excite a curiosidade do seu ouvinte com detalhes e sobretudo valores dessa normalidade. Depois, institua a crise, como nó dramático, como perda desse valor que, de modo aparentemente desinteressado, você descreveu antes. A história deverá render mais, o ouvinte estará preso à perda do valor original e vai querer que você conte a história até o fim, porque mordeu a isca.
Quer mais? Vamos à Oficina.
Porque ela nos conduz a uma crise. Uma quebra de normalidade em que não posso prever o desfecho. Enchi o cara de porrada, chamei a polícia e dei queixa? Entreguei tudo o que tinha e até hoje pago as contas do cartão de crédito? Fui esfaqueado e cheguei à emergência do hospital geral em estado de choque com anemia aguda e estou saindo agora, pela primeira vez? Morri e fui para o céu, entediante. Optei pelo inferno, de onde escrevo estas linhas?...
Parece que o bom narrador tem o dom de captar a instituição da (de uma) crise dentro da ( de uma) normalidade, na construção da narrativa de qualquer episódio. Normalidade e crise tanto podem ser óbvias e gritantes, como sutis e delicadas. Decisão de poeta (aqui no sentido de criador).
Experimente: na próxima vez em que for contar uma história, procure considerar o episódio a ser narrado como uma crise que se recorta sobre o pano de fundo de uma normalidade. Excite a curiosidade do seu ouvinte com detalhes e sobretudo valores dessa normalidade. Depois, institua a crise, como nó dramático, como perda desse valor que, de modo aparentemente desinteressado, você descreveu antes. A história deverá render mais, o ouvinte estará preso à perda do valor original e vai querer que você conte a história até o fim, porque mordeu a isca.
Quer mais? Vamos à Oficina.
3 comentários:
Roberto, parabens pelo blog.
Esta muito bom. Gostei de sua cena de narcisismo explicita e da "construcao" da historia. Um bom projeto web precisa de um bom roteiro, ou arquitetura da informacao.
Um beijo para vc e toda a sorte nas oficinas.
Meu 1º acesso ao Blog e eu tinha que comentar, eu precisava disso, e confesso que pela 1ª vez leio por completo uma página da web, observando todos os seus detalhes quase como um crítico, talvez essa liberdade seja consequência dos minutos intermináveis q acabei de passar durante uma tomografia soliscitada devido a um desvio nasal... Pois bem, fiquei satisfeito com o resultado visual, informativo e degustativo! Espero ter a oportunidade de participar de uma Oficina de Roteiro em breve, mas no momento o Teatro vem consumindo uma grande fatia do meu orçamento.
Parabéns pelo Blog e pela pós-graduação em cinema, informação retirada nesse exato momento do jornal de ontem...
Me lembrei de "Tres Usos da Faca", David Mamet. Parabéns pelo blog, Roberto.
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