DUAS PROPOSTAS E UM ALERTA PARA A NOVA LEI ROUANET
Por Roberto Duarte
A discussão da Lei Rouanet está no ar. Dizer isto, porém, é um equívoco. O que está no ar é a discussão da relação Estado/cultura. Ou, mais profundamente, cultura e sociedade.
Do Ministério Gil para cá, o Estado Brasileiro parece que passa a reconhecer que cultura é toda (quase toda, para não ser radical) troca simbólica praticada pela gente. Acho que devemos concordar que tudo quanto circula pela sociedade como linguagem articulada faz parte da cultura e é sintoma de algum aspecto da vida social. Não se trata mais de isolar um pequeno segmento das trocas simbólicas, aquele das obras de arte ungidas pelas auras da esfera culta. É certo que do ponto de vista da economia há uma série de práticas que são consideradas como o exclusivo campo da cultura. Nesse contexto, o produto cultural ganha, quando não todo corpo, uma face de mercadoria e a organização produtora assume o caráter de empresa, organização para o comércio/lucro, para o bem e pra o mal (sejam eles quais forem). Esse campo é tradicionalmente balizado e delimitado por conceitos que vem da noção clássica de arte na esfera culta e, recentemente, em momentos diferentes, passa a incluir as artes populares, de um lado, e os produtos da indústria cultural, de outro.
Há algumas perguntas que devem ser feitas para nortear a discussão de como Estado e cultura devem se enlaçar e das obrigações do Estado em relação às práticas culturais. A quem e como interessa esse enlace. Por que o Estado deve financiar ou estimular a cultura? Deve financiar ou estimular? Qual a diferença entre financiar e estimular? São perguntas importantes, mas que serão deixadas no ar, por enquanto.
Temos uma herança míope em relação ao mecenato e ao financiamento da cultura: a de que ela interessa, se não exclusivamente, prioritariamente as empresas produtoras de bens culturais. Não se deve apequenar o papel da empresa produtora, mas absolutizar, também não. A indústria cultural é uma das atividades econômicas mais importantes do mundo do ponto de vista da quantidade de dinheiro que movimenta, dos empregos que gera e da renda que produz embora esse não seja o único nem o mais importante aspecto da questão.
Os bens culturais, no sentido amplo de bens simbólicos, que circulam em nossas sociedades constroem as visões do mundo de quem os consome. Cada um de nós se torna testemunha do mundo através da experiência direta e da experiência mediada pelos meios de comunicação – de massa ou não. A imagem de mundo que carrego comigo, os valores que privilegio e, com o perdão da palavra, a minha formação ideológica, consciente ou não, são produtos diretos da minha dieta simbólica. Essa dieta constitui um sistema simbólico de que participo e que partilho.
Este é ponto de vista a partir do qual devemos entender a importância da revisão da Lei Rouanet. E podemos constatar que há um poder equivalente ou maior que o do Estado, atuando neste campo: o dos media (aqui como plural de médium/meio). Apenas pequenas parcelas da população consomem os bens culturais que se produzem, do ponto de vista tradicional. As estatísticas estão aí. Poucos vão a cinema, menos ainda a teatro ou freqüentam museus. Leitura de livros, literatura, nem se fala. Mas beira aos 100% a parcela da população que assiste a televisão. Isto tem feito com que os valores médios da população, as visões de mundo, as preocupações, os ideais de vida, praticados pela imensa maioria da população brasileira (diria que mundial, também) sejam aqueles modelarmente veiculados pelas TVs.
Embora os media, a televisão principalmente, sejam os grandes construtores e alimentadores dos sistemas simbólicos partilhados pela maioria da população brasileira, o Estado e sociedade não tem poder suficiente para mudar, controlar ou cobrar responsabilidades sobre o que as TVs, rádios, revistas e jornais, por extensão, veiculam.
Não há ferramentas eficazes sequer para prever os efeitos que produzem. Há apenas uma retórica liberalista que estabelece o direito à expressão, mas não considera os fatores econômicos e políticos que fazem com que alguns poucos grupos tenham muita liberdade de expressão e imensas maiorias não tenham sequer noção do que se trata, criando um fluxo unidirecional de circulação simbólica.
Entrevemos aqui o terceiro aspecto da questão. Vulgarmente, entretenimento. Mas muito mais que isso. É formação cidadã. Formação que se deveria operar também nas atividades prazerosas ligadas ao lazer e ao ócio. Como garantir ou pelo menos proporcionar acesso de toda população a todos os bens culturais? Como estimular o livre desenvolvimento da produção cultural mais espontânea, talvez espontâneo não seja o melhor adjetivo, mas aquela ligada às tradições, a raízes, a práticas que fazem parte, de algum modo, da produção das identidades dos grupos sociais (não querendo entrar em debates antropológicos). Trata-se aqui da produção cultural que prolonga e desenvolve os sistemas simbólicos partilhados desde a formação das sociedades em que vivemos e não de sistemas estranhos – lembremos das trocas de espelhinhos e miçangas por pau-brasil...
Os sistemas de dominação e submissão coloniais contemporâneos se exercem através da ocupação pela imposição de sistemas simbólicos. Os media multinacionais são as tropas dessas invasões. A contraposição de sistemas simbólicos locais aos globais é a única forma de resistência a invasão. O invasor se estabelece quando domina comercialmente e culturalmente os media locais.
Aqui surge a primeira proposta. Reflitamos: os media tem papel fundamental nos resultados das eleições. Para contrabalançar o poderio econômico que submete a opinião de rádios, jornais e tvs, influenciando diretamente os resultados das eleições, criou-se um horário eleitoral gratuito. Os media são concessão estatal. Poderia ser criado um equivalente cultural ao horário político. Uma espécie de horário cultural gratuito, que garantisse a visibilidade dos bens culturais para essa imensa população que assiste TV e é levada a acreditar que cinema é uma coisa que se faz na América do Norte, por exemplo. Claro que a implementação exigirá muita discussão e modos diferenciados de execução. Mas o princípio é interessante. Isto é um dos pontos que poderiam ser incluídos na nova Lei Rouanet. Uma parte do investimento do Estado, através da renúncia fiscal, poderia ser aplicada em tempo e espaço nos media com a finalidade de dar visibilidade pública a produção cultural não comercial ou não organizada empresarialmente. Se esse tempo e espaço puder ser também patrocinado por investidores privados, interessados na exposição de suas marcas, mais interesse haveria. Isso diminuiria o investimento público.
Outra mudança poderia ser feita através do incentivo ao consumo de bens culturais. Também através de uma renúncia fiscal de pequena monta. Incentivar as pessoas físicas pagadoras de impostos federais, estaduais e municipais, por exemplo, a comprarem determinados bens culturais, como ingressos, livros, obras, outros, e poderem abater uma parte dos seus valores do imposto que terão a pagar, no final do período.
Obviamente a intervenção do Estado se dará através do estabelecimento de critérios rigorosos para escolha das obras e empreendimentos que poderão participar tanto do Horário Cultural Gratuito como do Incentivo ao Consumo Cultural. Isto será outra discussão.
Por último, será necessário estar alerta para a complicação da lei e seu uso. A participação de especialistas na elaboração de projetos culturais pode ser benéfica a qualidade dos projetos e lucrativa para a corporação dos produtores culturais, mas se for indispensável será um instrumento de exclusão dos grupos sociais mais pobres, menos letrados, menos organizados, enturmados e menos afeitos as linguagens das burocracias “da máquina”. Menos letrado não significa menos poeta ou que não seja produtor de bens culturais de alta sofisticação poética. Ponto.